sábado, 23 de novembro de 2024

Coluna Política: Os desafios do governo Lula na cultura

A genuína cultura brasileira está em grave perigo, ameaçada na continuidade das suas manifestações mais representativas, simbolicamente obreiras da nossa identidade como povo tropical de matriz indígena, africana e ibérica. O diagnóstico tem uma explicação direta, embora o seu desenrolar não seja simples: a cultura foi sequestrada pela sanha lucrativa da indústria do entretenimento efêmero de massa e, paralelamente, instrumentalizada por interesses eleitorais imediatos.

Essa não é uma realidade recente, pois ainda na década de 1960 Guy Debord já alertava para o processo que levaria ao fim da cultura como lugar de identidade coletiva e consciência crítica do mundo no seu “A Sociedade do Espetáculo”. De acordo com Debord, na espetacularização da vida a cultura abandona o lugar do conhecimento para alojar-se no mundo do mero entretenimento e servir de instrumento para o não-conhecimento e o esquecimento da história, tornando-se estratégica para a despolitização da sociedade.

Mario Vargas Llosa, em “A Civilização do Espetáculo”, também alerta para a elevação do divertimento a condição de bem supremo a ser buscado pelo indivíduo, provocando a substituição feroz do antigo papel das artes de lugar de tomada de consciência da realidade para um frívolo espaço de distração e entretenimento, do qual o pensamento crítico, histórico e complexo foi expulso em nome da diversão efêmera do aqui e agora.

Ainda mais contundente e assustador é “A Cultura no Mundo Líquido Moderno”, de Zygmunt Bauman, que descreve o processo de transformação da cultura em mercadoria a ser vendida a consumidores cada vez mais vorazes por diversão instantânea e status superficial de classe. Lounges especiais, camarotes, espaços vips, espetáculos multi-iluminados com cenários instagramáveis onde se apresentam os artistas da moda, que tendem a desaparecer do cenário com a mesma velocidade com a qual apareceram pelas mãos da indústria do espetáculo, são um produto muito lucrativo e atraente para um mundo líquido em busca de prazeres superficiais permanentes.

De outra banda, o processo de despolitização profunda da cultura produz espaços públicos vazios de história, sentido e intelectualidade, o que desagua num debate político sem história, sem sentido e sem conhecimento, como amplamente presenciado por todos na última eleição presidencial. Não há como apartar o mundo das artes do mundo da política, de modo que o desmantelamento de um leva ao desmonte do outro. O tipo de arte produzida e consumida em grande escala por uma determinada sociedade leva a compreensão do tipo de política predominante nessa dada coletividade. A reboque disso, setores do mundo da política tendem a instrumentalizar a cultura para servir aos seus interesses mais imediatos, buscando atender as demandas por diversão permanente, erotização da vida, ostentação e o consumo desenfreado que vem na esteira da vida como espetáculo, ou seja: como representação irreal da realidade, como diria Deboard.

Nesse mundo, alerta Llosa, a cultura no seu sentido tradicionalmente dado, ligado a formação da identidade, da preservação da história e do conhecimento crítico e reflexivo da realidade, está prestes a desaparecer. Por tudo isso, não é pequeno o desafio do governo Lula no campo da cultura – a tarefa é salvá-la do desaparecimento!

Apenas boas intenções não realizarão essa missão, dado o tamanho do estrago já percebido. É preciso financiamento substancial, mas financiamento que chegue aos fazedores da cultura popular que produzem a identidade coletiva, o sentimento de pertencimento e o olhar histórico, crítico e reflexivo à realidade brasileira. A lei Rouanet, embora cumpra um papel de financiamento importante, como está não é instrumento para esse fim, pois entrega aos departamentos de marketing das grandes empresas privadas o destino do financiamento da cultura, o que quase sempre acaba levando ao espetáculo, lugar propício para exposição das marcas patrocinadoras aos consumidores mercantis da cultura. É preciso financiar a cultura pela cultura, pela sua preservação, não pelo retorno financeiro ou eleitoral que isso possa trazer a curto prazo.

Trata-se de uma mudança paradigmática que não será fácil de ser implantada, já que muito provavelmente haverá resistência interna dos setores da política e do empresariado privado que se beneficiam com a indústria do entretenimento e a cultura do espetáculo. Não é que a cultura também não seja o espetáculo, mas que não seja apenas o espetáculo, nem prioritariamente o espetáculo.

Se o governo Lula quiser de fato salvar a cultura, precisa olhar para dentro do Brasil, para o interior, para as pequenas cidades que produzem e reproduzem a arte que revela a alma do nosso povo e a nossa história como gente brasileira. É preciso criar mecanismo que aproximem o interior do Planalto Central e das capitais, lugares onde estão as instâncias de decisão e financiamento e onde o acesso ao fomento ocorre sem maiores dificuldade.

O desafio do governo Lula na cultura é o de olhar para dentro e empoderar nas instancias decisórias representantes do Brasil real dos interiores, da gente que faz a arte pela arte, a cultura pela cultura, mas que sem financiamento público tendem, sem ilusões ou romantismo, a sucumbir.

*Isaac Luna é cientista político, advogado e professor universitário

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