terça-feira, 26 de novembro de 2024

Governo volta olhar para mulheres, negros, trans e vítimas da ditadura

No campo dos direitos humanos e socioambientais, que compreende minorias sociais em todas as suas particularidades, o governo federal começou sua gestão atuando na lógica do “nada por nós sem nós”, constantemente reivindicada pelos movimentos sociais. Nos seus primeiros 100 dias, ele reparou feridas da ditadura militar, levou o debate do racismo novamente ao governo e ampliou o olhar para as mulheres e à comunidade LGBTQIA+, entre outras medidas.

A equipe de transição do governo de Luiz Inácio Lula da Silva apresentou a versão final de seu relatório em 22 de dezembro de 2022. No documento, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) contextualizou o cenário. Na avaliação da pasta, o desmonte promovido pela gestão anterior ocorreu por três vias que ocasionaram a interrupção de políticas públicas: o revisionismo do significado histórico dos direitos humanos, a restrição à participação social e o corte no orçamento.

O primeiro marco do ministério foi a própria indicação do advogado, professor universitário e filósofo Silvio Almeida ao cargo de titular da pasta. Um homem negro, com trajetória na luta antirracista e esteve à frente do Instituto Luiz Gama, que oferece assessoria jurídica a minorias sociais. Almeida também foi relator da comissão de juristas, criada pela Câmara dos Deputados para aprimorar a legislação de combate ao racismo no Brasil.

Composição do ministério

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tinha em sua composição oito Secretarias Nacionais: a de Política para as Mulheres; a da Família; a dos Direitos da Criança e do Adolescente; a da Juventude; a de Proteção Global; a de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; a dos Direitos da Pessoa com Deficiência e a de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa. Com a reorganização do presidente Lula e do ministro Silvio Almeida, o organograma passou a contar com cinco, além das assessorias diretas ao ministro: a dos Direitos da Pessoa Idosa; a dos Direitos da Criança e do Adolescente; a de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos; a dos Direitos da Pessoa com Deficiência e a dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. Pautas referentes a mulheres e ao enfrentamento ao racismo ficam sob responsabilidade de dois ministérios específicos.

Ditadura e autoritarismo

As consequências da ditadura militar e seus possíveis reflexos nos dias de hoje é um dos temas que tem a atenção do novo governo. Durante a posse dos novos secretários, Silvio Almeida anunciou a reativação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e a criação da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade.

Em 17 de janeiro, o ministério definiu os novos membros da Comissão de Anistia, para retomar a análise de processos que promovam a devida reparação a vítimas de perseguições políticas no país. Na ocasião, a pasta informou que, de 2019 a 2022, 4.081 (95%) dos 4.285 processos julgados pela comissão anterior, do governo Jair Bolsonaro, foram indeferidos. A primeira sessão pública da comissão, que tem como presidente Eneá de Stutz e Almeida, foi realizada em 30 de março.

Entre 24 de março e 2 de abril, o MDHC organizou uma série de iniciativas que pretendem retomar agendas institucionais pela preservação da memória, da verdade, da luta pela democracia e justiça social. O conjunto de atividades levou o nome de “Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva”. Foi também lançado o documentário “Nunca mais”, disponível no YouTube.

Outro aspecto que entrou na agenda do ministério foi o combate a discursos de ódio. No dia 27 de janeiro, o órgão anunciou a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), integrado por especialistas, profissionais e comunicadores que encampem a cultura da paz. Cerca de um mês depois, em 22 de fevereiro, foi publicada uma portaria que formalizou a constituição do grupo, comandado pela ex-deputada federal Manuela D´Ávila.

Janeiro chegou ao fim com a assinatura de decretos que criaram o Conselho de Participação Social e o Sistema de Participação Social Interministerial, para se restaurar o vínculo com movimentos sociais e organizações da sociedade civil. O sistema institui uma Assessoria de Participação Social e Diversidade em cada um dos ministérios, que ficam subordinadas à Secretaria-Geral da Presidência da República.

O programa Abrace o Marajó, iniciativa do governo Bolsonaro para melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios da região, no Pará, será objeto de auditoria a pedido do MDHC, conforme anunciou a pasta no início de fevereiro. No entendimento do ministério, a ação teria sido usada para beneficiar interesses estrangeiros, sem participação social e sem beneficiar cidadãos da região.

Desastres naturais

Os temporais que atingiram o estado de Pernambuco foram mais uma adversidade que exigiu resposta do governo federal. O MDHC monitorou a situação das pessoas desabrigadas e manteve contato com organizações locais, para prestar apoio, se acionado.

Poucos dias depois, foi a vez do litoral paulista, que enfrentou tensão semelhante. Nesse caso, a solução do ministério foi coordenar ações através da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, em conjunto com o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MDR). Em paralelo, uma equipe sobrevoou a região para calcular os danos e acompanhou a retirada de moradores das zonas de risco. Além disso, o MDHC se colocou à disposição para dar suporte à rede local que prestou assistência à população.

Ainda em fevereiro, o ministério lançou, no carnaval, a campanha “Bloco do Disque 100”, em parceria com a Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur). O propósito foi a divulgação do canal, que recebe denúncias de violações de direitos humanos. O mote foi “a alegria é um direito fundamental”.

Ainda na primeira metade de fevereiro, o presidente Lula e o ministro Silvio Almeida participaram de cerimônia, no Palácio do Planalto, para celebrar a recriação do Programa Pró-Catador e editar decretos de fomento à reciclagem.

Combinando com o acolhimento de reivindicações dos catadores de resíduos recicláveis, o governo federal tomou medidas no sentido de resguardar direitos das pessoas com deficiência. Um dos principais passos dados foi o lançamento de uma linha de crédito específica, que permitirá empréstimos com valor entre R$ 5 mil e R$ 30 mil. Para quitá-los, as pessoas com deficiência poderão parcelar a quantia total em até 60 meses, com taxas de juros de 6% a 7,5% ao ano.

Durante os primeiros 100 dias de governo Lula, o MDHC também produziu um relatório sobre o estado do sistema prisional no Rio Grande do Norte. O texto foi produzido e divulgado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que documentou casos de tortura contra detentos e outras situações, como falta de atendimento médico.

Outro projeto que deve expor vulnerabilidades pelo Brasil é a criação de um painel nacional de indicadores em direitos humanos e de políticas públicas de direitos humanos baseadas em evidências, que deve se concretizar com o apoio de especialistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A reflexão que faz o diretor de Litigância e Incidência Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, é de que o país necessita, antes de tudo, de uma reversão do cenário de declínio em diversas áreas. “Para um país com um racismo arraigado, com desigualdades estruturais, toda vez em que não há avanço nos direitos humanos, por sua consolidação, temos sempre um agravamento muito cruel dessas desigualdades. Portanto, um ciclo de quatro anos de retrocessos não é facilmente suplantado”, argumenta.

“Passos importantes foram tomados em relação a casos de profunda relevância, como é o caso do controle de armas, do enfrentamento ao trabalho análogo à escravidão”, exemplifica.

Sobre a relação com o Congresso Nacional, capaz de travar ou destravar matérias de interesse do governo federal, a economista e doutora em Políticas Sociais Nathalie Beghin ressalta que “a tensão é permanente”, mas confia no poder de articulação dos ministros de Lula. “Vai ser um debate tenso, mas os profissionais nomeados para as pastas, como os ministros Silvio Almeida, Anielle Franco e Cida Gonçalves, são pessoas comprometidas com suas agendas, mas penso que abertas ao diálogo”, pontua ela, que também é membro do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Comunidade LGBTQIA+

Um dos nomes de destaque do ministério, em termos de diversidade e, portanto, representatividade, é a travesti Symmy Larrat, que assumiu a secretaria que faz a defesa da população LGBTQIA+. Symmy preside a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).

Após um período de escanteamento por parte do governo federal, a comunidade de pessoas transgênero viu novidades ainda em janeiro: o lançamento da campanha “Construir para Reconstruir”, em alusão ao Mês da Visibilidade Trans. A campanha consistiu na veiculação de publicações digitais e matérias especiais, por meio das redes sociais do órgão.

No Brasil, o conjunto de agressões que sistematicamente vitimam a população trans faz com que a expectativa de vida de uma pessoa pertencente a esse grupo seja de 35 anos. Por isso, uma das mensagens difundidas durante a campanha foi “A minha existência não fere você, mas o seu preconceito me impede de viver”.

Em 2 de fevereiro, o ministro Silvio Almeida disse que conceber o Conselho Nacional LGBTQIA+ é “uma das maiores necessidades na construção de políticas públicas” para dar conta das demandas desse grupo populacional. A fala surge no contexto do resgate da participação social.

No mês seguinte, março, o MDHC lançou um mapeamento de políticas públicas para a promoção da cidadania das pessoas LGBTQIA+, distribuídas em todos os estados e capitais. O material integra o Programa Atena, realizado pela Aliança Nacional LGBTI+ e Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT (GAI), com o apoio institucional do Fórum Nacional de Gestoras e Gestores Estaduais e Municipais de Políticas Públicas para População LGBT (Fonges) e da Associação da Parada LGBT de São Paulo. Também apoiam o programa a Rede Trans Brasil, o Fórum Nacional de Pessoas Trans Negras, a Associação Brasileira de Estudos da Trans Homocultura, a Liga Trans Masculina João W. Nery e o Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat).

A presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson, acredita que no caminho de diálogo com o governo pode haver obstáculos, mas que nada se compara ao cenário anterior. “A gente tem ciência de que não será fácil debater e dar encaminhamento às políticas que a gente quer, que tanto precisa, mas está, pelo menos, consciente de que não será atacada e que não terá retrocessos nesse período”, comenta.

Mulheres

No final de janeiro, o Ministério das Mulheres divulgou as metas a serem alcançadas nos primeiros 100 dias de governo. Entre os planos, estavam a expansão da Casa da Mulher Brasileira, a retomada do programa Mulher Viver sem Violência, a recuperação do Ligue 180 e a articulação interministerial para a elaboração de uma lei pela igualdade salarial entre homens e mulheres.

Na última terça-feira (4), foi lançado o novo canal do Ligue 180, de denúncias de violência contra a mulher, via WhatsApp. Na Câmara dos Deputados, a expansão de 18,2% da participação feminina nas bancadas gerou um aumento recorde de propostas relacionadas à proteção de mulheres. Isso tem o potencial de orientar a agenda do Poder Executivo e do ministério capitaneado por Cida Gonçalves.

Outra medida que se consolidou foi o atendimento 24h das delegacias especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), inclusive em feriados e finais de semana. A determinação está na Lei nº 14.541, publicada nesta terça-feira (4), no Diário Oficial da União.

A pasta também esteve no lançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci II), que tem o enfrentamento à violência de gênero como um dos eixos. Ao todo, o governo prometeu 270 novas viaturas para as patrulhas Maria da Penha e delegacias especializadas de atendimento a mulheres. Essas e outras ações e intenções constam de uma lista sistematizada pelo ministério.

A diretora do Centro Popular da Mulher, da União Brasileira de Mulheres (UBM) de Goiás, Lucia Rincon, salienta que as mulheres são as primeiras interessadas na democracia. “Sem a democracia, não temos nada, nem a condição de falar do diferente, de nos manifestarmos, porque onde não há democracia, não há manifestação, divergência, diversidade. Essa é a grande primeira questão que, ao se avaliar ou se fazer um apanhado das ações do governo Lula, precisamos colocar”, defende.

Para a pró-reitora de Extensão e Cultura e Professora Adjunta na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Conceição Reis, ver esse tipo de representação crescer no governo federal é algo que revela abertura de diálogo e possibilidades de melhora para grupos esquecidos nos últimos anos. “A representatividade e experiências dessas mulheres ajudam a garantir esses direitos e elaborar políticas com este fim”, afirma. “Tenho muitas expectativas de melhorias para nós, mulheres negras”.

População negra

O governo Lula tem emitido uma mensagem inicial de atenção à população negra do Brasil. Sua primeira providência foi a criação do Ministério da Promoção da Igualdade Racial, onde reserva assento à irmã da vereadora Marielle Franco, Anielle Franco.

No que diz respeito à vereadora assassinada em 2018, o governo tem buscado acelerar o andamento das investigações. Com isso, em 22 de fevereiro, o ministro Flávio Dino determinou a instauração de um novo inquérito da Polícia Federal para ampliar a colaboração com a apuração do caso.

O mês de janeiro começou com um aceno do governo aos movimentos negro e indígena. No dia 11 daquele mês, o presidente da República assinou a Lei nº 14.532, que equipara injúria racial ao crime de racismo. A discriminação torna-se um crime imprescritível. Além disso, atualiza-se a lei, com a tipificação de racismo esportivo, artístico, cultural e religioso, esse último vivido com frequência por adeptos de religiões de matriz africana.

O presidente Lula também sancionou a Lei nº 14.519, de 05 de Janeiro de 2023, que institui o dia 21 de março como o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. A sanção presidencial foi tida como “um marco histórico” pela Fundação Cultural Palmares (FCP).

Em 21 de março, o presidente Lula assinou um decreto que reserva 30% dos cargos em comissão para negros e indígenas e entregou títulos de propriedade definitiva para quilombolas de Minas Gerais e Sergipe. Também foram assinados decretos referentes ao Programa Aquilomba Brasil, que vai promover direitos como acesso à terra, qualidade de vida e cidadania; e que instituem Grupos de Trabalho voltados ao novo Programa Nacional de Ações Afirmativas, Plano Juventude Negra Viva, Cais do Valongo e enfrentamento ao racismo religioso.

No início de abril, o governo federal revogou a “Ordem do Mérito Princesa Isabel”. No lugar, instituiu o Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos, que será concedido, a cada dois anos, sempre em anos pares, a pessoas físicas ou jurídicas que tenham notório trabalho na promoção e defesa dos direitos humanos, no Brasil.

Nesta semana, o presidente da Fundação Cultural Palmares, João Jorge Rodrigues, que foi escolhido para integrar a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, assinou a revogação da Portaria 189/20. O texto foi editado durante o governo Bolsonaro e promovia a exclusão de homenagens feitas a personalidades negras, como a escritora Conceição Evaristo e o cantor e compositor Milton Nascimento, do site oficial da fundação.

Na última quinta-feira (6), a FCP revogou a Portaria 57/2022, do governo Bolsonaro, que tornava mais rigorosas as normas para emissão de certidões de autodefinição para comunidades quilombolas. Ao mesmo tempo, o órgão resgatou a portaria de 2007, do segundo governo Lula, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos, também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, entre outros.

Para a educadora Givânia Maria da Silva, uma das fundadoras da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), um dos desafios do governo é recompor força de trabalho e orçamento para atingir os objetivos propostos.

“Participando do governo de transição, pude ver: não se trata de uma coincidência, tratou-se de alguma coisa deliberada para que todas políticas com recorte racial fossem fortemente afetadas. Fosse da mudança da política em si, do fluxo da política, como da extinção, ou aquelas que não foram extintas foram asfixiadas em seu orçamento. Costumo dizer que foram sufocadas financeiramente, como é o caso da regularização dos territórios das comunidades quilombolas”, afirmou.

Givânia acredita que movimento indígena conseguiu, mais do que o movimento negro, sensibilizar a sociedade em geral. Na sua avaliação isso ocorre porque grande parte da população brasileira ainda se recusa a assumir o próprio racismo.

“Muitas pessoas que até defendem as políticas indigenistas, não é porque estão concordando efetivamente com elas, mas é porque guardam um certo remorso histórico quanto aos povos originários, indígenas. Em relação à população negra, isso não existe e tem uma razão. A luta do Brasil é para apagar as memórias da escravidão e não para que as pessoas conheçam o mal que ela causou e ainda causa. Os reflexos dessa desigualdade entre pessoas negras e não negras estão ancoradas nessa escravidão, isso é inegável”, diz. “Uma sociedade racista não combina com o pensamento democrático”.

Luka Franca, membro da coordenação estadual do Movimento Negro Unificado (MNU) São Paulo, lembra que a perspectiva que prevalece no Brasil é a de colonizadores e que isso interfere na aprovação ou reprovação de debates e leis. “A gente tem figuras que atuaram e atuam cotidianamente para ampliar políticas que a gente sabe que atuam diretamente sobre a nossa morte, como a maior liberação de armas, políticas de restrição ao direito ao aborto e um monte de outras coisas que não estão pensando no conjunto da população pobre e negra desse país”, declara.

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