Passado o momento natural de comemorações do campo democrático pela vitória eleitoral do presidente Luiz Inácio lula da Silva, é preciso chamar o feito a ordem e avaliar os cenários com objetividade. Se é certo que a eleição de Lula representa uma vitória enorme, considerando que a pouco mais de três anos ele encontrava-se preso e com os direitos políticos suspensos, bem como que a campanha eleitoral foi marcada pelo uso em grande escala da máquina pública em favor do candidato derrotado, também é verdade que a extrema-direita saiu maior do pleito e que as narrativas e políticas antes, durante e depois da eleição mostram uma enorme fratura exposta na política brasileira: uma gigantesca despolitização do debate social e, por consequência, da política.
A existência de discursos inusitados e deslocados da realidade não é necessariamente uma novidade, já que a pluralidade de ideias e interpretações do mundo é uma característica da democracia. O que salta aos olhos nesse momento é a adesão de uma parcela substancial da população a narrativas sem qualquer razoabilidade, forjadas a base de notícias falsas, teorias da conspiração e discursos religiosos próximos ao fanatismo. Uma parcela da população brasileira protagoniza, em pleno século XXI, uma verdadeira distopia nos melhores moldes pensados por George Orwell (1984) ou Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), a depender do ângulo que se analise.
Mas, como isso é possível, qual a origem desses fatos?
A resposta não é unívoca, dada a multiplicidade de fatores que contribuíram e contribuem para esse cenário, mas um ponto corta transversalmente o caldo cultural que forma essa realidade e pode ser apontado como eixo central da resposta: a despolitização da sociedade em todos os âmbitos da vida cultural brasileira (o termo cultura aqui é usado na sua conotação mais ampla, antropológica, relacionada aos saberes e fazeres, as tradições, crenças e identidades características de um dado povo).
A aparente confusão conceitual em torno de questões básicas da política, do sentido da democracia, do papel da Constituição, da função dos Poderes e das instituições da República, da importância dos partidos políticos, do que significa a laicidade do Estado etc., são apenas alguns exemplos de como o abandono da formação política na cultura, na mídia e na educação em todos os níveis de ensino podem produzir uma sociedade refém de discursos irreais, antidemocráticos e distópicos.
O pensamento social democrático, republicano, multicultural e inclusivo obteve em 30 de outubro uma parcial vitória eleitoral, mas há ainda um longo caminho até a construção de um consenso em torno das ideias básicas que dão sustentação ao modelo de sociedade e nação desenhados na Constituição Federal de 1988. Isso somente será possível com um consistente programa de educação política, um amplo debate público envolvendo educadores, partidos políticos, imprensa, influenciadores digitais, líderes religiosos, congresso nacional, artistas, a juventude e toda a população para criação de diretrizes mínimas da formação do cidadão para o debate público que orienta os destinos políticos do País.
O Eduardo Galeano disse certa feita, acertadamente, que “a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”, de modo que o diagnóstico da realidade deve prescindir qualquer ação que busque sobre ela atuar. Repensar a formação crítica e reflexiva do pensamento social brasileiro é um projeto de muitas mãos, exige uma confluência de esforços de vários setores sociais, mas, como apontam os dados da realidade observados nas narrativas políticas, principalmente pós-eleição, deve ser tratado como ação estratégica prioritária para que o futuro não reserve ao País o retorno a um passado violento, obscuro e antidemocrático. Não tem nada ganho definitivamente, não tem prego batido e ponta virada, há um imenso e delicado trabalho ainda a ser feito: a politização e consequente qualificação do debate social brasileiro!
Isso não será fácil, simples nem rápido, mas precisa ser iniciado com responsabilidade e ampla participação popular, para que a fratura exposta comece a ser tratada e curada.
*Isaac Luna é cientista político, advogado e professor universitário.